A Democracia é o pior de todos os sistemas, com a
excepção de todos os outros", cantou Sérgio Godinho.
E que temos feito, enquanto sociedade, para a manter? Impõem-nos, fomos
progressivamente aceitando, viver à sua sombra, democraticamente. A Democracia,
para ser real, precisa de mais esforço, dedicação e trabalho do que os “outros
sistemas” de que o Sérgio Godinho fala sem nomear no seu refrão.
A democracia é nossa
Num momento político histórico como o que atravessamos, muito se fala em
refundações e reformas do Estado. A refundação imprescindível a fazer é a da
nossa Democracia, ou seja, na nossa forma de decidir colectivamente e organizar
a participação da sociedade. É preciso refundá-la, renová-la, reactivá-la,
reerguê-la e reconstruí-la. Ela é a condição da emancipação da maioria, hoje
claramente afastada das decisões que desenham o destino colectivo. Nada é por
acaso: é por isso que as decisões, formalmente legítimas do ponto de vista
democrático, são claramente contrárias aos interesses básicos da maioria da
população.
Através de uma simples consulta no dicionário, lemos que Democracia
significa o "governo do povo", ou seja, a Democracia foi criada para
o povo e deve ser mantida pelo povo. A sua participação no processo democrático
- mais ou menos directa - é condição essencial para que os princípios do
sistema estejam a ser seguidos.
Em Portugal, e em muitos dos países reconhecidos como democráticos, temos
assistido a um divórcio cada vez maior entre o sistema de governação e o seu
povo, entre as decisões políticas e as necessidades reais do colectivo. Vários
são os factores que influenciam esta perda de influência da vontade popular nos
órgãos de decisão. É preocupante a criação de condições sociais para a
alienação dos povos. Esta alienação é provocada por poderes económicos não
escrutináveis, mediados pelos seus agentes políticos. Só desta forma garantem
que as suas agendas podem ser postas em prática, sem grandes sobressaltos
cívicos.
Se olharmos para o globo, vemos que vários povos estão em luta, no
essencial, pela Democracia. O Brasil, a Turquia, os países da "Primavera
Árabe", os países europeus intervencionados pela Troika são o exemplo
mais presente dessa luta. Os graus de informação, coesão de propostas e
necessidades imediatas, são, como não podia deixar de ser em países e sistemas
tão diferentes, bastante diversos. Ainda assim sentimos, como há muito não
sentíamos, que estas lutas reflectem o verdadeiro pulsar daquelas sociedades e
que a mudança terá mesmo de acontecer.
Colocados perante esta encruzilhada, os vários interesses em colisão tentam
vencer esta batalha. E sabemos que só há duas saídas, ou vencem as pessoas e a
Democracia, ou vence o dinheiro, o totalitarismo financeiro e o unanimismo
político.
E a estas acções das populações, os governantes e o sistema destes países têm
respondido quase sempre da mesma forma: repressão e supressão de mais e mais
direitos fundamentais. Na Europa, estamos colocados perante o ressurgimento de
forças totalitárias e fascistas que, de forma cada vez mais aberta, tentam
sobrepor-se aos decisores políticos legítimos ou tentam influenciá-los e à
sociedade, através de acções que fazem renascer o medo do retorno a uma época de
má memória.
A democracia apenas formal alimenta(-se d)o senso
comum
Em Portugal, os sucessivos governos deste início de século foram dando
machadadas sucessivas em alguns direitos democráticos e na capacidade de
intervenção da população. É certo que se mantém muito duma Constituição da
República nascida duma revolução popular, que, já “tarde”, surpreendeu a
Europa. Permanecem à disposição um grande conjunto de instrumentos democráticos:
não só o voto ou a liberdade de expressão básica (apesar da projecção das
desigualdades também desse ponto de vista), mas também elementos concretos de
exercício da democracia, como a liberdade de associação e manifestação
praticamente irrestrita, o direito de petição, a democracia local, etc. Mas,
mesmo nas liberdades elementares, os direitos formais são corroídos pela
realidade: basta ver, por exemplo, como a precariedade afecta directamente o
direito à greve ou à simples associação sindical, além de retirar os direitos
mais estritamente laborais.
Vemos como os decisores políticos com responsabilidades governativas vêm,
de uma maneira ou de outra, desvalorizando os direitos democráticos básicos e sobrepondo
sempre as suas ideias e visões à opinião do cidadão comum. Mas por causa disso
devemos desistir deles? Não, devemos usá-los mais e melhor do que até agora. Sempre
que isso beneficia a acção colectiva, é fundamental que não abdiquemos dos
instrumentos ao nosso alcance e que os continuemos a utilizar. Quando nos colocamos à parte do sistema
estamos a deixar que ele se coloque e trabalhe contra nós.
"Pelo menos agora posso falar mal deles",
"pelo menos agora posso insultá-los na rua", são frases que ouvimos
permanentemente em Portugal. Estas afirmações têm tanto de verdadeiro como de
perigoso. Normalmente reflectem um certo pensamento que se contenta com as liberdades
básicas de expressão e de pensamento. Mas um sistema democrático não se cinge a
isto. Tenhamos sempre presente que estas liberdades são apenas condições
elementares da Democracia, uma pequena parte das suas fundações.
Neste momento, elas são a fachada usada para nos dar a
ideia de que realmente somos livres no pensamento e na acção. Enquanto nos
iludimos, cresce a subjugação colectiva a uma ideia global única, imposta de
forma concertada, e que nos leva a aceitar que há uma determinada forma
correcta de viver em sociedade.
O sistema que nos asfixia quer transformar a nossa
individualidade em individualismo, e quer que esse individualismo seja
entendido como libertador, quando ele provoca exactamente o contrário.
Assistimos à tentativa de criação de um exército de zombies obedientes que comprem e gostem das mesmas coisas, que
tenham a mesma visão estreita - ou não visão - da política e que aceitem que há
sempre quem pense e organize as coisas melhor que eles.
Democracia real funda-se no concreto
A democracia não é um modelo abstracto nem sequer um regime por si só.
Democracia hoje é, desde logo, a garantia de um Estado Social que não deixe
ninguém de fora, o direito ao emprego com direitos, o acesso à Educação e à
Saúde. E também a liberdade na criação e a igualdade de acesso a eventos
culturais e artísticos, a não discriminação com base em critérios étnicos,
religiosos, sexuais, políticos, etc.
É por isso que não é recurso a uma frase de propaganda dizer que o ciclo
actual coloca em causa a própria democracia. É por isso que a austeridade só
pode ser autoritária e, sempre que necessário, se dispensam sequer os aspectos
formais da democracia para implementar medidas contra a maioria. É por isso que
hoje é possível que manifestações massivas já não cheguem para derrubar de
imediato um Governo. Tudo fazem para nos convencer que não há alternativas, que
nada pode mudar, que tudo é inevitável.
Em Portugal alguns dos vectores fundamentais têm sido
extremamente atacados e postos em causa. Dois deles ganham contornos que se distanciam
a passos largos de um sistema democrático: o direito à Justiça e o direito à
informação livre e independente.
Sem Justiça e imprensa livres não há ilusões
democráticas. Quando o acesso à Justiça está cada vez mais limitado através de
aumentos absurdos das custas processuais - aumento propositado para favorecer
quem as pode pagar -, e quando temos a comunicação social manietada pelas
poucas empresas que a dominam - tornando a campanha de desinformação e
manipulação tão descaradas quanto necessárias para a manutenção do regime actual
-, então estamos muito longe de vivermos numa sociedade em que a igualdade é
possível.
Democracia real, já!
A exigência duma “democracia verdadeira” foi
justamente uma das primeiras palavras de ordem da explosão dos “indignados”,
que em vários países assustaram instituições e rotinas políticas. Dadas as suas
características, frequentemente acusados de inconsistentes e fortemente
disputados por quem domina a fabricação da opinião pública, estes movimentos /
acontecimentos colocaram justamente à cabeça a questão da democracia. Mas, com
maior ou menor profundidade, essa exigência teve de ganhar elementos concretos.
Foi precisamente quando e onde esses elementos
concretos se sobrepuseram à difusa mensagem de desilusão com a política que os
processos foram mais profundos, nomeadamente em defesa da própria democracia.
Não nos devemos surpreender com a permeabilidade que, muitas vezes, esses
acontecimentos tiveram às influências dos próprios poderes que visavam
combater. Mas muito menos devemos abdicar de nos envolver, participar e
aprender com as novas formas de protesto e mobilização.
Democracia agora
As lutas contra a Troika, e as políticas que destroem
o país e devastam a população, contra a precariedade, o desemprego e a
desigualdade social são lutas pela Democracia. É necessário passar a uma fase
em que quem marca a agenda são as pessoas, as suas necessidades e os seus
desejos.
Seja qual for a forma de Democracia que encontremos ou
reencontremos no futuro, teremos de garantir que ela seja real, justa e verdadeira.
As pessoas estão e têm de estar sempre no centro desta solução.
O exercício da democracia agora é, pois, antes de
mais, lutar para vencer o quotidiano de medo e retrocesso que nos tentam impor.
E isso faz-se com o conjunto das pessoas e das organizações, as que já estão
mobilizadas e sobretudo todas as que ainda não encontraram razões ou espaço
para intervir
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