sábado, 14 de setembro de 2013

Texto da Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis, distribuído no Encontro de Palmela


A Democracia é o pior de todos os sistemas, com a excepção de todos os outros", cantou Sérgio Godinho.
E que temos feito, enquanto sociedade, para a manter? Impõem-nos, fomos progressivamente aceitando, viver à sua sombra, democraticamente. A Democracia, para ser real, precisa de mais esforço, dedicação e trabalho do que os “outros sistemas” de que o Sérgio Godinho fala sem nomear no seu refrão.
A democracia é nossa
Num momento político histórico como o que atravessamos, muito se fala em refundações e reformas do Estado. A refundação imprescindível a fazer é a da nossa Democracia, ou seja, na nossa forma de decidir colectivamente e organizar a participação da sociedade. É preciso refundá-la, renová-la, reactivá-la, reerguê-la e reconstruí-la. Ela é a condição da emancipação da maioria, hoje claramente afastada das decisões que desenham o destino colectivo. Nada é por acaso: é por isso que as decisões, formalmente legítimas do ponto de vista democrático, são claramente contrárias aos interesses básicos da maioria da população.
Através de uma simples consulta no dicionário, lemos que Democracia significa o "governo do povo", ou seja, a Democracia foi criada para o povo e deve ser mantida pelo povo. A sua participação no processo democrático - mais ou menos directa - é condição essencial para que os princípios do sistema estejam a ser seguidos. 
Em Portugal, e em muitos dos países reconhecidos como democráticos, temos assistido a um divórcio cada vez maior entre o sistema de governação e o seu povo, entre as decisões políticas e as necessidades reais do colectivo. Vários são os factores que influenciam esta perda de influência da vontade popular nos órgãos de decisão. É preocupante a criação de condições sociais para a alienação dos povos. Esta alienação é provocada por poderes económicos não escrutináveis, mediados pelos seus agentes políticos. Só desta forma garantem que as suas agendas podem ser postas em prática, sem grandes sobressaltos cívicos. 
Se olharmos para o globo, vemos que vários povos estão em luta, no essencial, pela Democracia. O Brasil, a Turquia, os países da "Primavera Árabe", os países europeus intervencionados pela Troika são o exemplo mais presente dessa luta. Os graus de informação, coesão de propostas e necessidades imediatas, são, como não podia deixar de ser em países e sistemas tão diferentes, bastante diversos. Ainda assim sentimos, como há muito não sentíamos, que estas lutas reflectem o verdadeiro pulsar daquelas sociedades e que a mudança terá mesmo de acontecer. 
Colocados perante esta encruzilhada, os vários interesses em colisão tentam vencer esta batalha. E sabemos que só há duas saídas, ou vencem as pessoas e a Democracia, ou vence o dinheiro, o totalitarismo financeiro e o unanimismo político. 
E a estas acções das populações, os governantes e o sistema destes países têm respondido quase sempre da mesma forma: repressão e supressão de mais e mais direitos fundamentais. Na Europa, estamos colocados perante o ressurgimento de forças totalitárias e fascistas que, de forma cada vez mais aberta, tentam sobrepor-se aos decisores políticos legítimos ou tentam influenciá-los e à sociedade, através de acções que fazem renascer o medo do retorno a uma época de má memória.
A democracia apenas formal alimenta(-se d)o senso comum
Em Portugal, os sucessivos governos deste início de século foram dando machadadas sucessivas em alguns direitos democráticos e na capacidade de intervenção da população. É certo que se mantém muito duma Constituição da República nascida duma revolução popular, que, já “tarde”, surpreendeu a Europa. Permanecem à disposição um grande conjunto de instrumentos democráticos: não só o voto ou a liberdade de expressão básica (apesar da projecção das desigualdades também desse ponto de vista), mas também elementos concretos de exercício da democracia, como a liberdade de associação e manifestação praticamente irrestrita, o direito de petição, a democracia local, etc. Mas, mesmo nas liberdades elementares, os direitos formais são corroídos pela realidade: basta ver, por exemplo, como a precariedade afecta directamente o direito à greve ou à simples associação sindical, além de retirar os direitos mais estritamente laborais.
Vemos como os decisores políticos com responsabilidades governativas vêm, de uma maneira ou de outra, desvalorizando os direitos democráticos básicos e sobrepondo sempre as suas ideias e visões à opinião do cidadão comum. Mas por causa disso devemos desistir deles? Não, devemos usá-los mais e melhor do que até agora. Sempre que isso beneficia a acção colectiva, é fundamental que não abdiquemos dos instrumentos ao nosso alcance e que os continuemos a utilizar. Quando nos colocamos à parte do sistema estamos a deixar que ele se coloque e trabalhe contra nós.
"Pelo menos agora posso falar mal deles", "pelo menos agora posso insultá-los na rua", são frases que ouvimos permanentemente em Portugal. Estas afirmações têm tanto de verdadeiro como de perigoso. Normalmente reflectem um certo pensamento que se contenta com as liberdades básicas de expressão e de pensamento. Mas um sistema democrático não se cinge a isto. Tenhamos sempre presente que estas liberdades são apenas condições elementares da Democracia, uma pequena parte das suas fundações.
Neste momento, elas são a fachada usada para nos dar a ideia de que realmente somos livres no pensamento e na acção. Enquanto nos iludimos, cresce a subjugação colectiva a uma ideia global única, imposta de forma concertada, e que nos leva a aceitar que há uma determinada forma correcta de viver em sociedade.
O sistema que nos asfixia quer transformar a nossa individualidade em individualismo, e quer que esse individualismo seja entendido como libertador, quando ele provoca exactamente o contrário. Assistimos à tentativa de criação de um exército de zombies obedientes que comprem e gostem das mesmas coisas, que tenham a mesma visão estreita - ou não visão - da política e que aceitem que há sempre quem pense e organize as coisas melhor que eles.
Democracia real funda-se no concreto
A democracia não é um modelo abstracto nem sequer um regime por si só. Democracia hoje é, desde logo, a garantia de um Estado Social que não deixe ninguém de fora, o direito ao emprego com direitos, o acesso à Educação e à Saúde. E também a liberdade na criação e a igualdade de acesso a eventos culturais e artísticos, a não discriminação com base em critérios étnicos, religiosos, sexuais, políticos, etc.
É por isso que não é recurso a uma frase de propaganda dizer que o ciclo actual coloca em causa a própria democracia. É por isso que a austeridade só pode ser autoritária e, sempre que necessário, se dispensam sequer os aspectos formais da democracia para implementar medidas contra a maioria. É por isso que hoje é possível que manifestações massivas já não cheguem para derrubar de imediato um Governo. Tudo fazem para nos convencer que não há alternativas, que nada pode mudar, que tudo é inevitável.
Em Portugal alguns dos vectores fundamentais têm sido extremamente atacados e postos em causa. Dois deles ganham contornos que se distanciam a passos largos de um sistema democrático: o direito à Justiça e o direito à informação livre e independente.
Sem Justiça e imprensa livres não há ilusões democráticas. Quando o acesso à Justiça está cada vez mais limitado através de aumentos absurdos das custas processuais - aumento propositado para favorecer quem as pode pagar -, e quando temos a comunicação social manietada pelas poucas empresas que a dominam - tornando a campanha de desinformação e manipulação tão descaradas quanto necessárias para a manutenção do regime actual -, então estamos muito longe de vivermos numa sociedade em que a igualdade é possível.
Democracia real, já!
A exigência duma “democracia verdadeira” foi justamente uma das primeiras palavras de ordem da explosão dos “indignados”, que em vários países assustaram instituições e rotinas políticas. Dadas as suas características, frequentemente acusados de inconsistentes e fortemente disputados por quem domina a fabricação da opinião pública, estes movimentos / acontecimentos colocaram justamente à cabeça a questão da democracia. Mas, com maior ou menor profundidade, essa exigência teve de ganhar elementos concretos.
Foi precisamente quando e onde esses elementos concretos se sobrepuseram à difusa mensagem de desilusão com a política que os processos foram mais profundos, nomeadamente em defesa da própria democracia. Não nos devemos surpreender com a permeabilidade que, muitas vezes, esses acontecimentos tiveram às influências dos próprios poderes que visavam combater. Mas muito menos devemos abdicar de nos envolver, participar e aprender com as novas formas de protesto e mobilização.
Democracia agora
As lutas contra a Troika, e as políticas que destroem o país e devastam a população, contra a precariedade, o desemprego e a desigualdade social são lutas pela Democracia. É necessário passar a uma fase em que quem marca a agenda são as pessoas, as suas necessidades e os seus desejos.
Seja qual for a forma de Democracia que encontremos ou reencontremos no futuro, teremos de garantir que ela seja real, justa e verdadeira. As pessoas estão e têm de estar sempre no centro desta solução.
O exercício da democracia agora é, pois, antes de mais, lutar para vencer o quotidiano de medo e retrocesso que nos tentam impor. E isso faz-se com o conjunto das pessoas e das organizações, as que já estão mobilizadas e sobretudo todas as que ainda não encontraram razões ou espaço para intervir

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