sábado, 14 de setembro de 2013

Comentários soltos ao Encontro de Palmela sobre o Hoje e o Amanhã da Democracia (Por Rui d’Espiney)


1 – Palavras prévias

Cabe-me fechar este encontro. Faço-o[1] com alguns comentários em que procurarei explicitar idéias chaves que, na sua maioria, nasceram do debate aqui travado, dos textos que me chegaram e das conversas de corredor.

Mas antes disso, parece-me oportuno recordar, de forma sucinta, o que estava em causa com esta iniciativa.

No fundo, o que nos levou a ela foi a preocupação de um conjunto de cidadãos com o caminho para que vem enveredando a nossa democracia, onde cada vez menos se dá voz aos cidadãos e espaço à participação. Debatê-la, questioná-la, dissecá-la, e apontar para as alternativas que se levantam tornou-se, para esses cidadãos, um imperativo que, não temos dúvida, é partilhado por todos e todas as que sofremos os suas conseqüências.

Naturalmente, não quis o nosso Movimento de Democracia Participativa reflectir apenas para dentro. Pretendemos, pelo contrário, trazer à reflexão outros grupos de cidadãos também implicados na busca de alternativas para a ordem que nos domina, o que explica a presença, neste encontro, de pessoas provenientes de várias plataformas e associações.

Crentes em que a defesa e promoção da democracia Participativa não exclui, antes pressupõe, a acção da Democracia Representativa - defendendo-se, de facto, uma complementaridade que exige interacção entre ambas - tomámos a iniciativa de chamar à referida reflexão os partidos políticos com assento na Assembleia da República. Estamos convictos de que também para estes é essencial ouvir os cidadãos e responder aos sinais de mudança a que estes  aspiram e por que pugnam.



2 – A Democracia hoje

A maioria dos intervenientes neste encontro questionou, de forma muito crítica e vigorosa, a Democracia que temos, mostrando, de forma implícita, que ela se acha bem longe da consigna “Liberdade! Igualdade! Fraternidade!” que nos vem da Revolução Francesa.

Também eu não tenho dúvidas em afirmá-lo, chamando a atenção para a circunstância de a ordem que hoje nos governa não ser, efetiva e plenamente, democrática: nem pela sua NATUREZA, nem pela FORMA que cada vez mais assume o seu funcionamento.

2.1

No que respeita à sua NATUREZA, permito-me alertar para 7 traços característicos que claramente contrariam a noção de universalidade e de plenitude que a deveriam enformar.

1º - O facto, aqui várias vezes referido, de a democracia, e a política em geral, se encontrarem reféns da economia ou, mais grave ainda, dos poderes que dominam presentemente a economia e as finanças, e que nos remetem para o diktat de um mercado governado a partir da Europa (leia-se, da Alemanha) e dos Estado Unidos.

2º - O facto de a democracia ser de classe, assistindo-se, inclusivamente, à entrega aos privados, da riqueza que era pública, e ao alargamento do tempo de antena dos magnates – não eleitos, e representando-se apenas a si mesmos – que surgem a opinar sobre as políticas que se impõe prosseguir.

3º - O facto de proteger e alimentar as desigualdades sociais, permitindo que os mais ricos, escondidos em paraísos fiscais, se tornem ainda mais ricos, e que a pobreza se agrave e amplie em cada dia que passe.

4º - O facto de excluir a participação continuada dos cidadãos, legitimando-se, não pela opinião e acção destes, em cada momento renovada, mas por um voto depositado de 4 em 4 anos, por quem fica interdito de interferir, mesmo quando o programa que apoiou é violado.

5º - O facto de ser monolítica, como bem ressalta tanto da naturalidade com que se defende que a governação tem de ser exclusiva dos partidos que apoiam a actual ordem hegemônica (posição expressa pela utilização do eufemismo da existência de partidos do “arco da governação” , de que estão excluídos os que defendam políticas alternativas), como da tendência existente de alterar a lei eleitoral em termos que expulsem do parlamento as diferenças opcionais representadas pelos pequenos partidos.

6º - O facto de ser periferizante, ao criar as condições para o aumento das assimetrias rurais e urbanas através, nomeadamente, de políticas de concentração de serviços e de imposição de regras de vivencia que impedem a auto sustentabilidade das economias domésticas e locais.

7º - O facto, por fim, de ser retrógrada, apontando, como aponta, para modelos de crescimento e organização económica que procuraram vigorar há décadas, ou séculos, e que a História reprovou.

2.2

Quanto à FORMA, vários foram os exemplos aqui dados que nos confrontam com um funcionamento anti-democrático do Estado e dos poderes dominantes. Não vou ser exaustivo, destacando apenas os que, talvez, mais exijam ser contrariados:

-       A usurpação da representatividade popular: os sacrifícios que se impõem ao povo são apresentados como fruto do empenhamento voluntário com que todos se identificam, e não como um mero acto de espoliação dos mais vulneráveis;

-       A manipulação do medo: em especial pela ameaça de desemprego a quem não encarneira , mas também por práticas e posturas intimidatórias, como as que freqüentemente acompanham as políticas de cobrança fiscal;

-       A limitação das liberdades: bem patente na tônica na idéia de que estas terminam onde começa a ordem, fazendo da revolta e da indignação,  crimes.

-       A sacralização da Democracia Representativa: transformação do Parlamento em templo  que se quer inviolável, aparecendo, inclusive, quem defenda o seu fechamento ao público;

-       A intoxicação pelos discursos indutores de acomodação: a ilusão da concertação social, a transformação dos fracassos das políticas económicas em sucessos, a idéia de que se defende a essência dos bens públicos quando se tomam medidas que os desmantelam, a promoção do fatalismo (“A austeridade que sofremos é inevitável”), etc.

-       Os atentados renovados à Constituição: o alívio que seria para a Troika, muitos dos nossos comentadores e o Governo, ver esta suspensa...

-       A liquidação de formas democráticas de gestão dos serviços : com o reforço do poder dos dirigente não eleitos, a fazer-se acompanhar do silenciar e diminuição da autonomia dos dirigidos (nas escolas, nos hospitais, nas repartições, etc.)

-       A oposição às iniciativas de cidadania (caso das comissões de utentes e das petições) por regra não atendidas, desvalorizadas, quando não reprimidas;

-       Uma prática político – administrativa que alimenta a apatia o apoliticismo, e a anomia.



3 – A Democracia rejenuvescida e alternativa

É a “democracia” que atrás descrevemos, e não a Democracia em si, ou os princípios que a sustentam, que rejeitamos, e que queremos transformar.  Se cruzarmos o conteúdo dos vários manifestos que vêm sendo produzidos pelas muitas plataformas que se constituíram, bem como o teor dos debates proferidos em espaços como este em que nos encontramos, pode dizer-se que há consenso quanto à natureza e à forma da Democracia que tem de substituir a que hoje nos hegemoniza. Em lugar desta, e, no fundo, ao encontro da Constituição que nos rege, e que foi fruto de um momento em que os cidadão se conseguiram fazer ouvir, queremos:

-       Uma Democracia feita da participação sistémica das populações, isto é, em que os cidadão estejam, de forma activa, em todos os tempos e espaços de exercício de poder e de prestação de serviços;

-       Uma Democracia soberana, não condicionada à vontade de entidades que se impõem sem o nosso voto ou anuência;

-       Uma Democracia social e solidária, que faça do bem estar público a grande prioridade política;

-       Uma Democracia plural, que se enriqueça na e pela diversidade, protegendo a diferença e a individualidade da pessoa humana;

-       Uma Democracia onde se invista no combate sem quartel às desigualdades;

-       Uma Democracia orientada para a conscientização política das pessoas, contrariando as tendências para a indiferença;

-       Uma Democracia que redefina as relações dos partidos com a sociedade, tornando aqueles caixas de ressonância dos interesse e sentimentos dos eleitores;

-       Uma Democracia que integre, em vez de excluir, as múltiplas culturas que atravessam a nossa sociedade;

-       Uma Democracia que contraponha à globalização, que nos desestrutura e oprime, formas solidárias de cooperação com os demais cidadão do nosso planeta;

-       Uma Democracia que requestione o modelo de crescimento económico que temos, dando espaço e oportunidade a formas alternativas de desenvolvimento;

-       Uma Democracia que consagre  a legitimidade do direito ao protesto e à indignação;

-       Uma Democracia que eleja a PAZ como um valor intrínseco e inalienável, anulando os gastos com potenciais dispositivos de guerra;

-       Uma Democracia que responsabilize quem atente contra a sua sustentabilidade social e econômica, recusando que o povo pague as dívidas que não contraíu.


4 – A urgência de uma resposta

Estamos em crise, e numa crise que ameaça agravar-se a um ponto inimaginável. Caminhando no sentido em que temos caminhado, são os próprios fundamentos da Felicidade a que temos direito que serão destruídos. Por seu lado, opondo-nos a tal, tornando efectiva a Democracia que queremos e que a Constituição de Abril prometia, espera-nos, sem dúvida, um país reconfigurado e alternativo.

Quer isto dizer que, num sentido ou no outro, a mudança que nos atinge hoje ou a que desejamos para amanhã é de natureza civilizacional. O problema está, de facto, para quem se não conforma com a realidade que temos, em que, se não se agir já, pode ser, depois, tarde demais. Reagir não é só premente; é urgente.

Mas reagir como?

Como é evidente, e como nos diz o poeta galego António Machado, “ o caminho faz-se caminhando”. Muito do que se impõe fazer, descobriremos fazendo.

Há, no entanto, e desde já, alguns aspectos  - para que aponta muito do aqui se disse e alguma coisa que se pode retirar dos manifestos que lemos – que podem ajudar-nos a intervir.

Por um lado, importa ter presente que nem tudo é desfavorável na realidade que nos cerca:

-       O medo, os comportamentos formatados, o conformismo, serão um facto, mas a verdade é que o descontentamento existe e é generalizado, dando origem a momentos de explosão, bem evidentes nas várias grandes manifestações que o país conheceu, ou nos fortes conflitos que rebentaram em bairros periféricos de algumas das nossas cidades;

-       Nunca se assistiu à emergência de formas alternativas de acção e desenvolvimento como as que hoje têm lugar a nível local, quer em meio urbano, quer em meio rural

-       As dificuldade de comunicação e mobilização que se verificavam num passado ainda recente, vêem-se hoje superadas pela operacionalização das redes sociais;

-       Só de forma circunscrita e pontual o mal-estar provocado pelos tempos que vivemos se traduz em discursos contra a Democracia.

Por outro lado, podemos, sem dúvida, explicitar um conjunto de eixos estratégicos passíveis de orientar uma intervenção alternativa, muitos deles referidos neste debate. De entre esses, destaco 15, pelo papel decisivo que podem ter na construção de um movimento social alternativo e transformador:

-       O investimento em processos de emancipação e de criação de formas de governança auto-sustentada, vivenciáveis a nível local, tanto nos bairros periféricos, como nas aldeias e vilas que pululam no nosso país;

-       A potenciação do descontentamento, nem sempre visível, em torno da defesa dos bens públicos e comuns;

-       A explicitação de ideias, fortes mas simples, passíveis de implicar as pessoas;

-       A desmontagem dos discursos hegemónicos que vêm tendendo a naturalizar e tornar irreversíveis e incontornáveis as medidas anti - populares adoptadas pelos poderes;

-       A interacção das plataformas sociais com a Democracia Representativa, e, em particular, com os partidos que mostram opor-se à orientação sócio-económica em curso;

-       A multiplicação de tempos e espaços de debate em torno das questões críticas com que nos confrontamos;

-       A aposta na cidadanização do movimento associativo, contrariando tendências deste para práticas agencialistas ou de mera prestação de serviços;

-       A também aposta no estabelecimento de redes de cooperação e resistência, implicando as várias plataformas de cidadãos e associações;

-       A participação activa nas iniciativas de denuncia dos actos fraudolentos ou que tendem a transferir o ónus das soluções para o povo inocente (dívida pública, swaps, BPN , etc.) ;

-       O apoio sistemático a formas organizadas, informais ou formais, de Democracia Participativa que surjam, como é o caso das comissões de utentes e de algumas associações;

-       A implicação em estruturas municipais ou de freguesia, orientadas para a resolução de problemas sectoriais das populações, na perspectiva de induzi-las a funcionar como espaços de afirmação de direitos e de poderes;

-       A pressão, junto dos serviços públicos, em ordem a levá-los a adoptar práticas democráticas por recurso, por exemplo, ao uso e abuso do livro de reclamações;

-       A desmontagem de práticas repressivas ou de abuso do poder adoptadas pelas chamadas forças da ordem, ou mesmo dos tribunais;

-       A rentabilização das frentes da cultura, da educação, da saúde, da proteção social e do ambiente como fontes de conscientização e cidadania;

-       A solidariedade com o amplo mosaico de etnias que diversificam e enriquecem a nossa sociedade;



5 – Algumas notas finais

Quereria  terminar com 6 comentários complementares.

O primeiro, vai para a necessidade de, mais uma vez, tornarmos claro que o diagnóstico que fazemos  do funcionamento actual da democracia e da responsabilidade que os partidos têm no caminho que está a trilhar, não significa que se meça, pela mesma bitola, todos os partidos com representação na Assembleia da República. É, para nós, claro que muitos dos eleitos são fortes opositores das práticas e da natureza da ordem actual.

O segundo vai para a necessidade que vejo em proclamar a importância das ideologias, e o direito a possuí-las. As vozes que contra elas se erguem estão, na maioria dos casos, marcadas pela hipocrisia: vemos, por exemplo, os protagonistas da agressiva ideologia neo-liberal a vender a falsa idéia de que o seu estar e o seu discurso são não ideológicos e se pautam pelos interesses abstratos do país.

O terceiro, subsequente do anterior, vai para a validade das utopias, fonte primeira de todos os avanços feitos, até hoje, pela sociedade e pela ciência, constituindo, nesse sentido, um forma incontornável de conhecimento.

O quarto vai para o imperativo de agirmos tendo a consciência de que “não há coisas grandes, mas apenas formas grandes de ver as coisas pequenas”. É investindo no pequeno que se constroem soluções grandes.

O quinto, vai para algo que foi dito neste encontro: concretamente, a pertinência de abandonarmos o pensamento dicotómico, substituindo-o por um pensamento complexo, capaz de abarcar a globalidade, o que não quer dizer um pensamento complicado.

O sexto e último, vai para a reflexão que aqui se esboçou sobre os movimentos inorgânicos. Uma coisa é perceber que o espontâneo é instável, e muitas vezes, ineficaz... outra, é negar a sua pertinência: espontâneo foi o levantamento dos sans – coulotes , que levou à tomada da Bastilha, dando início à Revolução Francesa, espontânea foi a revolta da Maria da Fonte que conduziu à queda dos Cabrais, espontâneo  foi o movimento que conduziu à Comuna de Paris; espontânea  foi a insurreição dos camponeses que desaguou na guerrilha de Zapata, no México, espontânea foi a revolta do Gueto de Varsóvia que fez tremer o poderoso exército nazi de ocupação da Polónia, espontâneo é o movimento que, no Brasil, tem obrigado o governo a concessões imensas ao povo. Como dizia um líder do Movimento Operário Internacional, morto há cerca de 90 anos, por mais decisivo que seja o elemento consciente, ele não exclui o espontâneo: ajuda a dar-lhe sentido!
Rui d'Espiney (ICE)


[1] Esta é, com efeito, a intervenção que teria efectuado no final do Encontro. A falta de tempo obrigou-me a apenas avançar duas ou três idéias.

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